No silêncio
vespertino da capela, Nossa Senhora de Fátima, recém-chegada, aparecida num
andor de rosas e empossada a nova Padroeira da nova cidade, conversa com Santa
Teresinha, padroeira que era do tempo da vila, agora dispensada.
- Hein, Teresinha!
Me conta! Alguma historia dos teus devotos nestes anos que foste a padroeira...
Afinal, foram trinta anos...
- Ah! Senhora! São
tantas! Tanta fé iluminando tantas horas, tantos caminhos por onde eu pude
derramar rosas que o Senhor me deu para este povo irmão. As festas que me
fizeram...
- E milagres,
Teresinha! Ao menos um?
- Milagres...
Milagre, mesmo, não houve. Casos como o do Benedito... Muito engraçado!
- E como foi?
- Ah! O Benedito...! Ele veio do
Piauí, saco às costas, vinte e dois dias de caminhada, sonhando com o sol, com
as estrelas da Boa Esperança. Benedito trabalhou nas moagens de cana.
Depois de meses de trabalho, num dia
que amanheceu carregado de tantas lembranças, o choro alto do engenho, tão
lamentoso, triste, arrasado, levou o Benedito às chapadas do Piauí. E viu os
bodes saltando nos rochedos, os jumentos zurrando de sede, a noiva dele que
deixou prenhe – pelo que naquele dia era o dia do menino nascer... O dia todo
aquele choro cortando o coração, lembrando tanta coisa... E o Benedito
assoprava assim como que caçando o ar que lhe faltava. Doendo o peito de muita
recordação. No fim da tarde, o Benedito correu pelo canavial para se livrar
daquele pranto, mas aí o vento lhe trazia vozes das insolências dos velórios do
seu povo, se arrastavam lamentações das viúvas, dos órfãos; via carrancas dos
machos que não choravam porque morrem suas mulheres de parto.
- E ficou bêbado? É de se compreender,
não é? A saudade...
- Sim. A saudade. Uma saudade grande,
grande, é dor! Pois é! Assim o Benedito falou alto, gritou. E disse que era do Piauí,
valente e duro que nem os angicos de cascas secas e ásperas do sertão. Mas só
fazia gritar porque era grande a sua dor e gritava dizendo que era duro porque
a saudade por tudo queria lhe torcer, meter no engenho o para ele se derramar
em choro. Era por isso que ele gritava, para não se entregar. Mas por que assim
falava tão alto de forte e de valente, foi que de longe um soldado ouviu. Este
soldado tinha vindo de Barra do Corda para prender um certo Severino que tinha
cortado umas palmeiras para dar palmito ao seu cavalo de sela. Só por isso.
Este soldado ouviu de longe o gritar do Benedito e veio e o prendeu.
- Já tinham cadeia nesse tempo?
- Nada! Não Senhora! Veja só! Era um
tronco. Engraçado! Invenção de um Delegado que aprendeu na senzala do avô, lá
pras bandas de Pastos Bons. Era um pedaço de pau atravessado no chão, jatobá
imenso, debaixo da mangueira. E um outro por cima, preso ao debaixo por fortes
dobradiças e correntes feitas pelo ferreiro Isaac Varão. Entre um pau e outro
tinham buracos que prendiam as pernas dos prisioneiros. O pobre do preso ficava
sentado ou deitado com as pernas presas no pau. Era um suplicio danado. De
passar dias... Ali o Benedito foi preso a boca da noite. Ai! Como o pobre sofreu!
A canela entrando no tronco era como se ele todo estivesse entrando no engenho.
Aí veio o choro. Custou, mais veio. E numa hora ele me chamou. E eu me lembrei
dele que, no dia que chegou do Piauí, num mês de maio, quando a gente festejava
a Senhora, ele foi na capela e conversou comigo. Conversou só me olhando e eu
olhando ele. Não é que o Benedito tinha sido o mais merecido. Não. Quanta gente
sofreu naquele tronco... Eu visitei a todos. E dava um jeito de amolecer o coração
do delegado para logo vir soltar o pobre. Mas o Benedito era diferente... A dor
dele... Aí eu não me tive paciência de ir de noite fazer o Delegado sonhar com
o pobre preso, sacudir no punho da rede da consciência do ruim... O Benedito
preso, daquele jeito tão desumano, deu meia noite, todos dormiam, só não o
supliciado. Então eu sacudi o cadeado, o Benedito, o Bendito viu e se soltou.
- Você é mesmo francesa, hein Teresinha?
Tem o lema da revolução na cabeça!
- Ousei, Senhora! Chegava de tanto
obedecer. Era demais! Tem horas que a gente precisa quebrar a corrente da lei.
Porque o AMOR, acima de tudo.
- Ah! É! Irmã! Não viu o que o meu
Filho fez lá no Templo de Jerusalém? ... E o Benedito fugiu?
- Escondi ele por vários dias, até o
soldado ir embora sem levar preso nenhum...
- E então...
- É o mais engraçado! O Benedito virou
santo mangueiro! O povo que dizia e ele se aproveitou disso para se fazer mais
respeitado. Mas ele me agradeceu. E me contou o que pretendia fazer...
- Você! ...
- Dei uma rosa para ele! Ah! Benedito!
Falava mais d que grita um periquito!
O cristal violeta da penumbra da
capela se quebrou com as risadas das duas santas muito amigas.
Raimundo Carneiro Correa (Trincheira do Azul,1989)
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