domingo, 2 de julho de 2017

O TRONCO


No silêncio vespertino da capela, Nossa Senhora de Fátima, recém-chegada, aparecida num andor de rosas e empossada a nova Padroeira da nova cidade, conversa com Santa Teresinha, padroeira que era do tempo da vila, agora dispensada.
- Hein, Teresinha! Me conta! Alguma historia dos teus devotos nestes anos que foste a padroeira... Afinal, foram trinta anos...
- Ah! Senhora! São tantas! Tanta fé iluminando tantas horas, tantos caminhos por onde eu pude derramar rosas que o Senhor me deu para este povo irmão. As festas que me fizeram...
- E milagres, Teresinha! Ao menos um?
- Milagres... Milagre, mesmo, não houve. Casos como o do Benedito... Muito engraçado!
- E como foi?
- Ah! O Benedito...! Ele veio do Piauí, saco às costas, vinte e dois dias de caminhada, sonhando com o sol, com as estrelas da Boa Esperança. Benedito trabalhou nas moagens de cana.
Depois de meses de trabalho, num dia que amanheceu carregado de tantas lembranças, o choro alto do engenho, tão lamentoso, triste, arrasado, levou o Benedito às chapadas do Piauí. E viu os bodes saltando nos rochedos, os jumentos zurrando de sede, a noiva dele que deixou prenhe – pelo que naquele dia era o dia do menino nascer... O dia todo aquele choro cortando o coração, lembrando tanta coisa... E o Benedito assoprava assim como que caçando o ar que lhe faltava. Doendo o peito de muita recordação. No fim da tarde, o Benedito correu pelo canavial para se livrar daquele pranto, mas aí o vento lhe trazia vozes das insolências dos velórios do seu povo, se arrastavam lamentações das viúvas, dos órfãos; via carrancas dos machos que não choravam porque morrem suas mulheres de parto.
O Benedito, coitado! Queria chorar, mas não podia. Seus olhos estavam secos, secos, como os riachos de sua terra natal no rigor da seca. Como se livrar daquela dor, o pobre não sabia. Era uma dor grande demais que grito nenhum poderia dizer o quanto era. E uma dor guardada assim dentro do peito... A Senhora que já sofreu também pode imaginar! Uma dor de ferida braba de saudade leva um pobre homem a certos desatinos. Foi o que aconteceu com o Benedito. Assim ele chegou junto do alambique de cachaça, encheu a cuia e bebeu todinha de uma vez. Tamanha dor, tamanha sede.
- E ficou bêbado? É de se compreender, não é? A saudade...
- Sim. A saudade. Uma saudade grande, grande, é dor! Pois é! Assim o Benedito falou alto, gritou. E disse que era do Piauí, valente e duro que nem os angicos de cascas secas e ásperas do sertão. Mas só fazia gritar porque era grande a sua dor e gritava dizendo que era duro porque a saudade por tudo queria lhe torcer, meter no engenho o para ele se derramar em choro. Era por isso que ele gritava, para não se entregar. Mas por que assim falava tão alto de forte e de valente, foi que de longe um soldado ouviu. Este soldado tinha vindo de Barra do Corda para prender um certo Severino que tinha cortado umas palmeiras para dar palmito ao seu cavalo de sela. Só por isso. Este soldado ouviu de longe o gritar do Benedito e veio e o prendeu.
- Já tinham cadeia nesse tempo?
- Nada! Não Senhora! Veja só! Era um tronco. Engraçado! Invenção de um Delegado que aprendeu na senzala do avô, lá pras bandas de Pastos Bons. Era um pedaço de pau atravessado no chão, jatobá imenso, debaixo da mangueira. E um outro por cima, preso ao debaixo por fortes dobradiças e correntes feitas pelo ferreiro Isaac Varão. Entre um pau e outro tinham buracos que prendiam as pernas dos prisioneiros. O pobre do preso ficava sentado ou deitado com as pernas presas no pau. Era um suplicio danado. De passar dias... Ali o Benedito foi preso a boca da noite. Ai! Como o pobre sofreu! A canela entrando no tronco era como se ele todo estivesse entrando no engenho. Aí veio o choro. Custou, mais veio. E numa hora ele me chamou. E eu me lembrei dele que, no dia que chegou do Piauí, num mês de maio, quando a gente festejava a Senhora, ele foi na capela e conversou comigo. Conversou só me olhando e eu olhando ele. Não é que o Benedito tinha sido o mais merecido. Não. Quanta gente sofreu naquele tronco... Eu visitei a todos. E dava um jeito de amolecer o coração do delegado para logo vir soltar o pobre. Mas o Benedito era diferente... A dor dele... Aí eu não me tive paciência de ir de noite fazer o Delegado sonhar com o pobre preso, sacudir no punho da rede da consciência do ruim... O Benedito preso, daquele jeito tão desumano, deu meia noite, todos dormiam, só não o supliciado. Então eu sacudi o cadeado, o Benedito, o Bendito viu e se soltou.
- Você é mesmo francesa, hein Teresinha? Tem o lema da revolução na cabeça!
- Ousei, Senhora! Chegava de tanto obedecer. Era demais! Tem horas que a gente precisa quebrar a corrente da lei. Porque o AMOR, acima de tudo.
- Ah! É! Irmã! Não viu o que o meu Filho fez lá no Templo de Jerusalém? ... E o Benedito fugiu?
- Escondi ele por vários dias, até o soldado ir embora sem levar preso nenhum...
- E então...
- É o mais engraçado! O Benedito virou santo mangueiro! O povo que dizia e ele se aproveitou disso para se fazer mais respeitado. Mas ele me agradeceu. E me contou o que pretendia fazer...
- Você! ...
- Dei uma rosa para ele! Ah! Benedito! Falava mais d que grita um periquito!
O cristal violeta da penumbra da capela se quebrou com as risadas das duas santas muito amigas.

Raimundo Carneiro Correa (Trincheira do Azul,1989)

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